domingo, 27 de julho de 2025

Crônica – "O silêncio que sangra"

                 No mundo animal, a vida se resolve pela força. A sobrevivência é crua, instintiva, natural. Mas no mundo dos humanos – esse mundo que se autointitula racional – esperava-se que fosse diferente. Esperava-se compaixão, sensibilidade, justiça. Esperava-se humanidade. Em Arcoverde, no entanto, nesta semana que passou, a cena foi de um animal...mas não dos que andam sobre quatro patas.

Foi um de dois pés, roupa e frieza, que protagonizou uma barbárie no bairro São Geraldo. Um açougueiro — não aquele que dignamente exerce seu ofício, mas o que transforma a violência em gesto — esfaqueou um cachorro. Um ser vivo. Um coração que bate. Um olhar que busca abrigo. Um ser que só conheceu a rua como casa, o medo como rotina, e a indiferença como vizinha.

E enquanto o sangue do animal tingia o asfalto, o silêncio dos que poderiam agir gritava. Autoridades que juraram proteger. Gestores que, em tempos de campanha, posam sorridentes ao lado de animais resgatados e prometem abrigos, castrações, políticas públicas. Dizem que os cães de rua terão uma Disney. Mas tudo isso some quando o tempo das promessas acaba e chega o tempo da realidade. E a realidade, para os cães de rua, é dura, solitária e cruel.

Se esse cachorro pudesse falar, talvez dissesse:

"Desde que nasci, caminho. Sinto fome, frio, medo. Mas ainda assim, confio. Aproximo o focinho em busca de uma mão, um gesto, um carinho. Meu sonho era simples: um canto seco nos dias de chuva, uma tigela nos dias de fome, um nome. Mas o que encontrei foi a lâmina da maldade. E o silêncio. O silêncio dos que podiam me ver. Me proteger. Me acolher. Dizem que os humanos são racionais. Mas, ao contrário de mim, são capazes de ferir por prazer. E o pior: são capazes de fingir que nada viram."

A vida de um cão de rua não é um erro. É uma responsabilidade. Uma responsabilidade social, humana e política. Enquanto as cidades se orgulham de inaugurar praças, pórticos e shows, os animais continuam invisíveis. Vivem entre calçadas e riscos, entre restos e rejeição. Precisam de mais do que migalhas: precisam de políticas públicas reais. Castração, abrigos, campanhas de adoção, fiscalização contra maus-tratos. Precisam de uma sociedade que entenda que empatia não é luxo, é dever.

O crime cometido precisa ser combatido com o peso da lei. Não como exceção, mas como exemplo. O culpado deve ser punido. Não só pelo que fez a esse cão, mas pelo que simboliza: o retrato da barbárie que se instala quando o Estado se omite, quando a sociedade fecha os olhos, quando o humano se esquece do que o torna humano.

Que essa dor não seja em vão. Que esse sangue desperte. Que esse silêncio não se repita. Porque não é só um cachorro que sangra. É a própria humanidade que se esvai.

Paulo E.R. Carvalho: Jornalista, comunicação estratégica e produção de conteúdo. Fundador da Ânima Comunicação e Conteúdo e criador e editor do portal de notícias A Folha das Cidades. 


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