
Por Míriam
Leitão*
Tanto
tempo depois, já era de se esperar que o presidente Jair Bolsonaro soubesse as
funções do cargo que exerce. Seis meses é prazo suficiente para qualquer
aprendizado, ainda que o natural seria que ele já soubesse, ao se candidatar,
as funções de quem chega ao cargo máximo do país. A grotesca e inconstitucional
defesa do trabalho infantil num país que vem lutando contra essa chaga há anos,
a ideia de nomear o filho para o posto diplomático mais estratégico do país, a
declaração mesquinha sobre João Gilberto mostram que ele não entendeu o mais
elementar do papel de governar para todos os brasileiros.
Com
Bolsonaro não dá para registrar todas as impropriedades de uma vez. São tantas
nestes seis meses que ocupariam um jornal inteiro. Os absurdos têm que ser listados
em bases diárias, no máximo semanais, para caberem num espaço de uma coluna.
A
semana terminou em vitória para ele, pela aprovação da reforma da Previdência,
mas ela ocorreu a despeito dele. Durante esse período da tramitação, Bolsonaro
levantou sucessivas polêmicas sobre os mais aleatórios assuntos, como se ainda
fosse o deputado bizarro que ocupou por 28 anos o mandato sem relatar um único
projeto. Enquanto a reforma andava, ele não construiu pontes, não dialogou e
atacou quem defendia o projeto. Ele sequer entendeu a reforma que propôs. Prova
disso é sua mobilização em favor dos policiais. O projeto consagra a estranha
situação de um policial legislativo, que fica lá entre os tapetes verde e azul,
ser o brasileiro que se aposenta mais cedo. Jair Bolsonaro continua sendo o que
foi: um político paroquial e corporativista, com posições histéricas em
questões de direitos humanos e que faz declarações histriônicas e impensadas.
O
grande João Gilberto, que mudou a música brasileira, influenciou gerações,
projetou o nome do Brasil no exterior, nos deixou um legado de maravilhas
sonoras, nem se importaria em saber que sua morte não teve as condolências do
presidente. Mas a Presidência se manifesta pelo país, e não pelas preferências
pessoais do ocupante do cargo. Isso é tão básico que constrange ter que
lembrar.
É
sandice até pensar no filho Eduardo Bolsonaro como embaixador nos Estados
Unidos, o posto diplomático mais importante do país. O Brasil sempre teve uma
diplomacia profissional e dela se orgulhou. Essa decisão é nepotismo,
independentemente da firula de que não é cargo em comissão, mas sim cargo
político. Quebra o princípio da impessoalidade. A diplomacia é carreira
complexa, exige qualificação longa e por isso, como nas Forças Armadas, tem uma
gradação hierárquica. Quem a exerce precisa entender as culturas de outros
países, captar sutilezas, conhecer leis internacionais e convenções e conduzir
negociações delicadas. O embaixador representa o país. Seu trabalho não é
apenas se relacionar com o governo ao qual está acreditado, precisa entender e
falar com a sociedade, perceber as tendências. Eduardo ligou-se à ultradireita.
Escolheu o gueto. Não falaria com uma sociedade com tanta diversidade quanto a
americana. O fato de ter fritado hambúrger nos Estados Unidos e ter estado com
o presidente Donald Trump não é, claro, qualificação. Além disso, o governo
Trump é transitório e pode acabar no ano que vem.
Há
projetos que são do país, e não de um governo. Por isso, mesmo quando partidos
diferentes se alternam no poder, certos programas seguem em frente. Um deles é
o do combate ao trabalho infantil. Isso está na agenda nacional. No último dado
do IBGE, o trabalho infantil pesava sobre 190 mil crianças de cinco a 13 anos.
Outros 808 mil adolescentes, de 14 a 17 anos, apesar de estarem em idade em que
a lei permite o trabalho, estavam sem a carteira e a situação exigidas pela
lei. Das crianças de 5 a 13 anos trabalhando, 71,8% eram pretas ou pardas. O
que leva um presidente da República, com a responsabilidade que deveria ter,
achar que isso pode ser estimulado? A Constituição que ele jurou defender
proíbe o trabalho infantil.
Bolsonaro
entenderá algum dia o que são os interesses do país? Provavelmente, não.
Algumas frases dele ofendem, revoltam ou espantam. Essa, do trabalho infantil,
por ser mais absurda que as outras, desanima. Tudo o que se pode dizer lembra a
poesia escrita há um século e meio: existe um governo que a bandeira empresta.
* Míriam Leitão,
jornalista há mais de 40 anos, é colunista do jornal desde 1991. É autora,
entre outros, do livro Saga Brasileira, ganhador do Jabuti de Livro do Ano
(2012). Entre seus prêmios, recebeu o Maria Moors Cabot da Columbia University
(NY).
Nenhum comentário:
Postar um comentário