O Supremo Tribunal Federal
está no centro de uma turbulência que atinge os poderes. Diálogos trocados
entre o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava-Jato
no Paraná, e outros integrantes do Ministério Público Federal indicam a origem
de uma investigação informal contra o presidente da Corte, Dias Toffoli, e o
ministro Gilmar Mendes a partir de familiares.
A reação em torno do caso
começou na semana passada, com decisões determinando o envio das mensagens ao
tribunal. Em entrevista exclusiva ao Correio na noite da última quinta-feira,
Mendes, um crítico a determinadas ações policiais e medidas judiciais - como a
condução coercitiva - aponta falhas em órgãos de correção, para impedir erros e
abusos por parte dos integrantes da força-tarefa.
O magistrado diz que
faltou experiência por parte dos procuradores e que condutas de integrantes da
Lava-Jato evidenciam a existência de uma “Orcrim”. “Há uma organização
criminosa para investigar pessoas.” Indicado para a Corte em 2002 pelo
ex-presidente Fernando Henrique, ele é doutor em direito pela Universidade de
Münster, na Alemanha. Um dos integrantes mais controversos do STF e respeitados
pelos colegas, Mendes é alvo de críticas na internet e nas ruas — se antes de
petistas, agora, de defensores da Lava-Jato.
A seguir, os principais
trechos da entrevista feita no gabinete dele no STF, que é decorado por
camisetas de times, fotos, charges, reportagens de jornais e imagens de santos:
Como
o senhor viu as revelações relacionadas a esse movimento do procurador Deltan
Dallagnol em relação a pessoas próximas ao senhor, como à sua mulher e ao
ministro Dias Toffoli?
É claro que com
constrangimento. Mas, de certa forma, se vocês acompanharem as minhas falas ao
longo desses meses e anos, vocês perceberão que há alguma coisa de premonição.
Eu até já disse que sou meio profeta, porque as coisas que eu falo acontecem.
Então, de certa forma, eu imaginava que essas coisas estavam ocorrendo. Claro
que, quando a realidade se manifesta, a gente também toma um choque. Mas é uma
atitude das mais sórdidas e mais abjetas que se pode imaginar. Por que se
queria investigar Toffoli ou a mim? Por que nós fizemos algo errado? Não,
porque nós representávamos algum tipo de resistência às más práticas que se
desenvolviam. É uma coisa tão sórdida que fala dos porões. Onde nós fomos
parar?
O
senhor vai tomar alguma atitude prática em relação a esse episódio?
Nós estamos discutindo
essas questões. A meu ver, coisas como essas não ocorrem se o sistema tem um
modelo de autoproteção e de correção. O que faltou aqui? Faltaram os órgãos
correcionais. O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) não funcionou bem, o CJF
(Conselho de Justiça Federal) não funcionou bem, o CNMP (Conselho Nacional do
Ministério Público) não funcionou bem. Faltou chefia, supervisão.
Ainda
falta?
Estamos falando do que
ocorreu. Aqui faltou supervisão, houve um autonomismo, um independentismo, e
produziu-se isso que aí está. E isso é só o que a gente sabe; não sabemos de
tudo. Não se falou nada sobre delações.
Isso
coloca em xeque tudo que foi feito?
Não, não, acho que é
importante separar isso. É óbvio que, ao se criticar as operações, não se pode
compactuar com o malfeito, com corrupções. Agora, com certeza, coloca em risco
o sistema, e pode trazer consequências para os seus eventuais processos.
O
CNMP já arquivou ações apresentadas sobre o tema...
Recentemente, o
corregedor, que é um bom profissional, arquivou as primeiras representações
dizendo que elas se louvavam em ato ilícito, porque houve envolvimento de
hackers. Primeira coisa que se tem que fazer é separar. A gente tem falado isso
sempre. Tem que separar a questão do hackeamento, que é deplorável, lamentável,
e precisa ser punido, se houve, claro. Como tudo indica que houve, essas
informações existentes precisam ser explicadas.
Por
parte de quem publicou também?
Não, precisam ser
explicadas por parte de quem as produziu. Veja que vivemos um fenômeno
semelhante, e vocês de Brasília acompanham isso de forma privilegiada, à
questão dos vazamentos. Os vazamentos são crimes por parte do agente público.
Não obstante, vocês publicam. Nós estamos há quatro ou cinco anos nessa questão
da Lava-Jato. Nisso, deploravam sempre os vazamentos, que vinham da
procuradoria. A toda hora, isso estava estampado nos jornais. Precisamos
aprimorar isso, acho que inclusive devemos agravar a pena e tratar desse tema
com maior seriedade. Mas só para dizer que temos que separar as duas questões.
O funcionário público tem que dar explicação sobre o conteúdo daquilo que ele
produziu. Na verdade, isso não deveria ter existido. Não pode haver
força-tarefa entre membros do Ministério Público e juiz.
O
senhor avalia que existe algum interesse específico neste caso?
A impressão que eu tenho é
que se criou no Brasil um estado paralelo, se a gente olhar esse episódio (do
Deltan e Toffoli), para ficarmos ainda nas referências que o procurador faz.
Dizer “eu tenho uma fonte na Receita e já estou tratando do tema”, significa o
quê? Significa “estou quebrando o sigilo dele”. No fundo, um jogo de compadres.
É uma organização criminosa para investigar pessoas. Não são eles que gostam
muito da expressão Orcrim? “Eu tenho um amigo na Receita que já está fazendo
esse trabalho”. Veja bem, qual é esse trabalho? De quebra de sigilo.
Mas,
pela origem dessas informações, o senhor acha que eles podem ser processados
por esses vazamentos?
Eu acho que a gente pode
tirar lições disso, aprendermos. Faltou cabelo branco lá, faltou gente que
tivesse noção. Se a gente olhar os fatos, é um grupo de deslumbrados.
O
senhor inclui, nesse grupo de deslumbrados, o ministro Sérgio Moro?
Não quero fazer
personalizações, nem falar de nomes. Mas, na verdade, aquilo é um erro
coletivo, a Lava-Jato como um todo, e que já tinha se manifestado em outras
operações. Eu acompanho isso desde 2002. Se vocês olharem, por exemplo,
participei intensamente do caso Satiagraha, Daniel Dantas, e tudo mais. À
época, o juiz De Sanctis e o delegado Protógenes eram os santos da época. Em
geral, essas pessoas surgem, vão ao céu e depois são enterradas
melancolicamente.
O
senhor acha que se perderam na vaidade, por terem se transformado em
super-heróis da sociedade?
Não. Aconteceu uma série
de coisas. A mídia que, em geral, os celebra até o céu, depois não os leva para
o inferno. Normalmente, se dá um silêncio obsequioso. Por quê? Porque ela
(mídia) foi cúmplice no processo. Se vocês quiserem lembrar, vamos lembrar de
Luiz Francisco. Algum de vocês fala de Luiz Francisco? Não, mas era o
personagem que passava informações, e, quando ele caiu em desgraça, morreu de
morte morrida, sem que ninguém mais dele falasse. Então, essa é uma questão, e
acho que nós temos que aprender a encerrar esse ciclo desses falsos heróis e
apostar na institucionalização. O combate à corrupção continua importante, o
combate à criminalidade também, mas veja, essa gente tinha ganho uma
importância tão grande que eles tinham se tornado um poder. “Ah, mas isso não
pode fazer porque contraria a Lava-Jato.” “Ah, isto o outro não pode fazer
porque contraria a Lava-Jato.” As 10 medidas que a Lava-Jato concebeu...
E
o projeto de se criar uma fundação para gerir R$ 2 bilhões?
Seria uma das maiores
fundações do mundo. Eu vivo em Portugal, lá tem a fundação Calouste Gulbenkian,
que investe 100 milhões de euros por ano, faz chover em Portugal. Só os R$ 2
bilhões dessa fundação seriam mais de R$ 400 milhões, fariam chover no Brasil.
E a história seria outra hoje se a fundação fosse adiante?
Com certeza. Quantos blogs
isso ia sustentar, e era para isso, se diz claramente.
O
senhor acha que esses fatos envolvendo a Lava-Jato vão resultar em algo, ou
será apenas aprendizado?
Acho que nós temos que
estimular os órgãos competentes a fazerem o seu papel. Acho que o próprio
corregedor do CNJ errou ao arquivar a investigação com o argumento de que o
juiz já não era mais juiz. Mas, antes de chegar a essa conclusão, deveria ter
feito todas as investigações que o próprio CNJ pode fazer. Porque, se não tiver
nenhum efeito, pelo menos terá efeito de caráter pedagógico, subsidiará novas normas
para essa relação entre juiz, promotor, delator, delegado. Então, acho que isso
é importante. O CNMP, que é um pouco o primo pobre do CNJ, precisa funcionar
mais. Por quê? Porque hoje temos notícias muito maiores de abusos mais
frequentes na esfera do MP e pouca coisa acontece.
O
senhor falou da questão das delações. Seria um ponto que deveria ter avanços no
CNMP?
Eu tenho a impressão que a
questão das delações vai envolver essa temática, e nós temos tido até alguns
casos. Recentemente, levei um caso para a turma que envolve o Gaeco (Grupo de
Atuação Especial de Combate ao Crime) do Paraná. E é um caso bastante singular,
porque, no Paraná, uma determinada pessoa foi surpreendida no motel com uma
criança. E aí ele fez uma delação, dizendo que havia corrupção na estrutura
fiscal do estado do Paraná, e acabou sendo beneficiado por uma delação que
abrangia inclusive o crime de pedofilia. Depois, ele se desentendeu com o MP e
o MP cancelou a delação. Então ele saiu acusando o MP de ter adulterado os termos
do depoimento dele. Em um terceiro passo, o MP chama e faz um acordo geral com
ele. Agora, as partes estão aqui reclamando no Supremo, dizendo que essa prova
que foi feita com tanta convicção é uma prova inidônea, que eles estão sendo
condenados neste processo com base em uma delação que foi pré-fabricada. Para
mim, me parece que temos que olhar isso, como estão funcionando esses órgãos,
que têm muito poder.
Esses
novos fatos aumentaram as possibilidades de mudanças na legislação?
No Brasil nós temos um
abecedário de abuso de autoridades, vai de A a Z. Se você olha aí, as várias
operações estão muito contaminadas. Afora esse caso, que tem todas suas
especificidades, mas falando de cabeça, veja a operação carne fraca, você reúne
1.200 agentes policiais para dizer que tinha papelão na carne do Brasil, depois
você diz que não é bem isso, que era um vício apenas de empacotamento. O
episódio do reitor de Santa Catarina, em que imputaram a ele um desvio que não
se perpetuou, agora esse episódio do presídio de Altamira, isso tudo dá um
retrato de selvageria nessa gente. Portanto, a lei de abuso de autoridade seria
bem-vinda, porque seria de aplicação geral.
A
procuradora Raquel Dodge reuniu a força-tarefa e declarou apoio. O senhor acha
que ela deveria ter um posicionamento mais firme?
Quanto a ela prestar apoio
à Lava-Jato, é natural. É compreensível. Se perguntar também a nós, não vamos
negar que há méritos nessa operação, como em outros, é inegável. E não se trata
de desmontar estruturas que podem ser efetivas no combate à criminalidade, mas
é preciso saber que isso tem que se fazer. Eu já disse isso de forma muito
enfática: não se combate crimes cometendo crimes. E a toda hora, nós corremos
esse risco, se não criarmos anteparos, controles, de produzirmos essas
distorções, como essa que estamos vivendo. Como aquela que vimos, por exemplo,
no caso do JBS-Miller, e tantos outros que vêm sendo revelados. A falta de
transparência e a falta de controles correcionais levam à isso. Agora, sobre o
grande dano que se causa, não somos nós, eventuais críticos de uma dada
prática, que causamos danos a essas operações, são os malfeitos próprios. Eles
que causam grandes danos.
Como
o senhor avalia as palestras que os procuradores ministram mediante pagamento?
Há um conflito de interesses ou não?
Talvez. Eu acho que deve
haver realmente algo claro. Vocês sabem bem que eu sou professor há muito
tempo, e conheço essa temática. Não vejo na magistratura esse agenciamento de
palestras nessa dimensão, normalmente convidam as pessoas para dar palestras,
aulas, conferências, e, quando muito, se oferece uma remuneração simbólica por
algumas horas-aula. Naquela dimensão, é algo realmente muito incomum. Usando
uma linguagem do mundo publicitário, os “400k” são algo que realmente, eu, que
sou um modesto professor que só vendi, dentro do curso de direito
constitucional, 100 mil exemplares, não recebo isso. Na verdade, não recebo
nada, faço palestras sem cobrar. Não cobro por nenhuma.
Naquele
caso, havia palestras para bancos, e até para uma empresa investigada pela
própria Lava-Jato.
Tudo isso cai no tema que
estou dizendo, sobre a nova institucionalidade. Acho que precisa disciplinar.
Eu acho que todos nós, tenho até dito isso, vamos sair mais fortes disso. Acho
que, institucionalmente, vamos sair mais fortes.
O
senhor imagina que a opinião pública criou heróis? Como convencer a sociedade
de uma lei como essa que o senhor está sugerindo?
Eu tenho a impressão de
que nós temos que conversar, dizer isso claramente. É interessante quando as
pessoas criticam uma lei de abuso de autoridade, que impõe limites a um
delegado, um promotor, ou juiz, porque é como se dissesse “mas isso vai
restringir minhas atividades”. Mas o quê? Significa que você precisa ter o
direito de cometer abuso? De eventualmente fazer uma pequena tortura? Então, é
preciso dialogar com a opinião pública. As pessoas, na verdade, só conseguem
avaliar isso quando elas, de alguma forma, internalizam isso, e sabem que essa
violência pode ser perpetuada contra elas.
Houve
anuência de ministros do Supremo com eventuais abusos?
É muito difícil dizer.
Quando a gente participa de uma série de eventos históricos, muitas vezes nós
não temos a visão do conjunto, e muito provavelmente a percepção fica um tanto
quanto embotada.
O
senhor foi duramente criticado, em alguns momentos, nas redes sociais...
Não só nas redes, mas
publicamente, também. Votei vencido quando entendia que devia fazê-lo. Em
relação às questões das conduções coercitivas, fui eu o relator, felizmente o
tribunal me acompanhou, e, por 6x5, essa posição foi mantida, mas àquela
altura, já 300 pessoas tinham sido conduzidas coercitivamente lá em Curitiba,
tanto era um modelo que depois nós declaramos ilegal.
O
senhor acredita que esses fatos que ocorreram em Curitiba, que inclusive
envolvem um ex-candidato à Presidência, podem ter interferido nos resultados
das eleições?
Eu tenho a posição de que
as eleições sofreram efeitos. É evidente. Porque o sistema político todo foi
afetado por isso. E, se a gente olhar pontualmente, houve ações diretas no Mato
Grosso do Sul, em Goiás, em Curitiba. Mas, independentemente disso, toda essa
questão, a inelegibilidade, as imputações, as acusações, na verdade, mudaram o
cenário político.
Foi
um efeito intencional ou um reflexo da influência dos fatos na eleição
presidencial?
Não, tem um efeito
contextual, geral. Se a gente olhar hoje, os candidatos ligados à Segurança
Pública lograram uma votação expressiva, beneficiários desse contexto. Não
faria esse tipo de análise específica, eu acho que a operação Lava-Jato já
levou por si só a afetar o sistema político, até muito antes da eleição, e, de
certa forma, definiu quem poderia e quem não poderia ser candidato.
No
ano passado, na iminência do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula,
o general Villas-Boas chegou a tuitar falando que a força estava atenta à sua
missão institucional. As Forças Armadas influenciam no Supremo ou exercem algum
tipo de pressão no Supremo?
Não acredito que o
tribunal tenha votado por conta do tuíte do general, e não vejo competência nas
Forças Armadas para deferirem limites de competência do STF. Isso não está
escrito no texto constitucional. Se alguém está fazendo essa leitura, é uma
leitura extravagante.
Mas
o senhor acredita que o general extrapolou um pouco a sua competência ao se
manifestar na rede social?
Eu tenho a impressão de
que o Brasil viveu uma embolada institucional. Muita confusão, em que os papéis
ficaram trocados. Nós mesmos devemos ter cometido erros nesse contexto. É
importante que agora as coisas sejam chamadas pelo nome e que todos nós
trabalhemos em função de uma reinstitucionalização.
Quanto
a esse processo, fazendo uma análise dos primeiros seis meses do governo, como
o senhor avalia?
É um tema difícil, porque
isso está em processo. Mas eu acredito que as instituições estão funcionando, e
é claro que é um novo processo, um novo aprendizado, um novo testamento
político.
Os
fatos que vieram à tona podem interferir em julgamentos de ações do
ex-presidente Lula aqui no Supremo?
Esse é um processo muito
especial. E acho que precisa ser olhado com muito cuidado. E a gente vê como
que ele aparece nos diálogos (entre os procuradores). A própria competência da
13ª Vara Federal de Curitiba para este caso deve ser avaliada. Por que,
independentemente de falar se aqui tem ou não corrupção, essa corrupção estava
associada à Petrobras? Essa dúvida aparece.
Com
a prisão dos suspeitos de hackear os celulares, entre outros acontecimentos
recentes, o senhor acha que já tem materialidade suficiente para analisar se
houve um julgamento justo?
É uma questão que vamos
ter que analisar com muita cautela. É um contexto muito peculiar que tem que
contemplar inclusive o fato de o ex-juiz, que condenou o ex-presidente Lula,
depois ter aceito um convite para ser ministro do governo adversário. Isso é um
elemento que aparece inclusive nos questionamentos internacionais.
As
provas, mesmo que de origem ilícitas, podem ser usadas pela defesa, podem ser
argumentadas no processo?
Esse é um debate que vamos
ter que travar. É evidente que a prova ilícita é repudiada pelo texto
constitucional, a pergunta que sempre se faz é se a prova ilícita pode ser
usada para isentar alguém de responsabilidade, para absolver alguém, e nós
temos algumas respostas parciais em relação a isso. Por exemplo, quando alguém
grava uma conversa quando ele está sendo constrangido, ameaça de extorsão, ou
uma gravação ambiental para uma defesa. Com posições desse tipo, a
jurisprudência constrói uma resposta positiva.
O
país corre algum risco em relação à democracia?
Eu espero que não. Eu acho
que o Congresso tem cumprido um papel importante na Câmara e no Senado. O
Judiciário vem fazendo as avaliações e respondendo liminares e tudo mais, nós
aqui, ainda hoje ajudamos no caso da relatoria do ministro Barroso, na
inconstitucionalidade de uma MP que tenha sido repetida. Parece-me que esse
poder de moderação e de contenção vem sendo exercido, mas é claro que nós temos
que trabalhar no sentido de fortalecer as instituições, e valorizar a cada dia.
Porque a democracia, além das regras gerais, faz parte de um pacto
civilizatório, de um conjunto de regras não escritas. E essas regras não
escritas estão sendo constantemente violadas.
Tem
uma crise hoje na relação entre poder Judiciário e Ministério Público?
Não. Essas crises, nós
resolvemos. Eu acredito que temos que, de fato, fazer uma autocrítica e
fazermos os devidos aperfeiçoamentos.
O
presidente Bolsonaro disse que vai indicar para o STF um "ministro
terrivelmente evangélico". O que o senhor acha dessa declaração?
O importante é que
preencha os requisitos constitucionais. Talvez aqui haja uma certa hipérbole,
porque estamos vivendo um momento político bastante intenso. Muitas vezes as
declarações fazem tom de campanha política. Aqui nós temos católicos, ateus,
agnósticos, eu sou católico, mas, a despeito disso tudo, não permito que a
questão religiosa afete os meus posicionamentos. Não vamos fazer uma leitura
política disso também, ele certamente está falando isso para um público que
está um pouco mais ávido, que reclama do STF, é também um discurso político,
nesse sentido.
Como
o senhor vê as declarações polêmicas do presidente sobre Comissão da Verdade,
fome, trabalho infantil e, especialmente, em relação à ditadura militar?
Eu tenho a impressão de
que isso acaba incitando um debate público, e as palavras têm força, e é preciso
que a gente preste atenção a isso. À medida em que determinadas autoridades
emitem determinados juízos no campo da violência, muito provavelmente isso
estimula o público. Por exemplo, se nós adotarmos um discurso homofóbico, muito
provavelmente lá na ponta, nós estimularemos já não o discurso, mas ações
homofóbicas. Então, é preciso ter essa dimensão. Agora, isto vale para todos
nós. De alguma forma, acho que temos que, na medida do possível, nos pautarmos
por esse cuidado.
A
OAB interpelou o presidente, via STF, para que ele explique as declarações. A
OAB agiu corretamente?
Vamos acabar julgando
isso. Mas é uma forma civilizada de lidar com a temática no Estado democrático
de direito. Ir à Justiça reclamar e fazer os possíveis encaminhamentos. Alguém
já disse que, na Inglaterra, o Estado de direito é aquele que, às 6 da manhã,
alguém bate e sabemos que é o leiteiro, e não a polícia. Já não existe mais
leiteiro. Mas Estado de direito é aquele que não tem soberanos. Então, se a
gente eventualmente errar, nós seremos cobrados por isso. Parece-me que esse é
o sistema que está em funcionamento.
As
críticas ao Supremo motivaram a abertura de um inquérito para tratar de fake
news. O senhor acha que esse inquérito não acabou acirrando as críticas?
Não. Acho que o inquérito
foi um momento de rara felicidade do ministro Dias Toffoli. Extremamente feliz.
Não eram críticas, eram verdadeiras agressões. Manifestações que se traduziram
inclusive no pedido de fechamento do tribunal. Ou a substituição do tribunal pelas
Forças Armadas. Uma leitura extravagante do artigo 142 da Constituição.
Parece-me que o inquérito não foi feito para inibir críticos, mas esses ataques
violentos que se faziam e às vezes se escondiam no anonimato.
Mas
até um general foi alvo dos mandados…
Sim, mas isso faz parte do
processo. É uma resposta normal do Estado democrático de direito. Tem que se
examinar o que o general estava a falar.
Mas
houve censura a veículos de imprensa. Inclusive isso foi revogado
posteriormente…
Mas isso faz parte do
processo. Ali o que se avaliou é que haveria fake news. Que a notícia sequer
existiria. E depois se comprovou que de fato a notícia existia. Que a
declaração publicada era verdadeira.
O
senhor foi considerado um carrasco pelo PT. Hoje existe uma visão diferente. O
senhor mudou ao longo do tempo?
Eu fui, durante muito
tempo, considerado um crítico do PT. Não obstante eu tivesse excelente relações
com integrantes do PT, inclusive com o ex-presidente Lula. Eu fui presidente
durante a presidência dele. Tivemos um diálogo elevado e excelentes relações.
Agora, fui crítico, por exemplo, de abusos de poder. Critiquei a forma como se
fazia o lançamento da candidatura da presidente Dilma. Mas eram críticas a atos
específicos. É muito curioso que vocês olhem, por exemplo, que o PT indicou
oito ministros do Supremo, na composição atual. Eu fui um dos cinco votos a
favor do presidente Lula. Dois outros foram também de pessoas não indicadas
pelo governo do PT. Ministro Celso e ministro Marco Aurélio.
Mas
o senhor foi crítico desta composição maior em relação ao governo Lula.
Todos nós temos vivido
momentos de aprendizado institucional em 30 anos, o tempo da Constituição.
Passamos a viver uma sucessão de governos do PT. Dois mandatos do Lula e a
princípio dois da presidente Dilma. O que levava a essa composição? É uma
discussão que existe nos Estados Unidos. Quando se tem a predominância de uma
forma política por mais tempo. Lá, os indicados permanecem pelo “bem servir”,
sem limite de idade. Então, esse debate é um aprendizado. Foi nesse contexto
que favorecemos a ideia dos 75 anos (limite de atuação dos magistrados).
O
PSL, partido de Bolsonaro, quer mudar essa regra com a PEC da bengala…
E alguns aliados querem
elevar para 80, no contexto da Previdência. Acho difícil que isso venha a
ocorrer. É uma democracia muito jovem, e que tem feito seus experimentos.
Inclusive em termos eleitorais. As diversas forças políticas, as mais variadas,
de alguma forma, têm passado por testes.
O
senhor talvez seja o integrante mais criticado da Corte, seja nas ruas ou na
internet. Como avalia essa visão das pessoas de que o senhor é o ministro que
solta bandidos?
Tem uma capa de uma
revista que diz assim: “O juiz que discorda do Brasil”. Agora tem uma hashtag
com a frase “Desculpe, Gilmar estava certo”. Isso faz parte deste contexto. Eu
tenho a impressão de que, às vezes, era uma caixa de ressonância e uma grande
confusão. Vocês mesmo da imprensa cometem esse erro. A prisão provisória só se
justifica em caso de necessidade. Portanto, a princípio, só deve ocorrer depois
do julgamento definitivo. Mas em função inclusive do populismo judicial,
passa-se a utilizar a prisão para este fim. São juízes extremamente populares.
Não significa que sejam os melhores. Claro que, quem se contrapõe a eles, paga
um preço. E qual é o preço: a impopularidade. Felizmente, apenas a
impopularidade. Nenhum atentado, até agora.
O
senhor reforçou a segurança?
Às vezes sim. Em geral, no
mundo acadêmico, temos um reconhecimento muito grande. O mundo da academia é
muito aberto. E a vida prossegue. Qualquer tema que tenhamos que lidar e tenha
esse caráter divisivo produz esse sentimento.
Em
relação à decisão do Toffoli sobre o Coaf e a Receita, como o senhor avalia? A
PF teme a suspensão das investigações.
Nós temos tido vários
debates sobre essa temática. Remonta ao governo FHC, que é o artigo 6º da Lei
Complementar que permite acesso ao sigilo bancário por parte da Receita. A
partir daí, o debate seguinte é sobre compartilhamento. A Receita tem acesso e
compartilha com o MP, sem autorização judicial. É uma questão delicada. Outra
questão é do próprio Coaf, que levanta essas informações. Temos que examinar
isso com cautela. Essa questão voltou e vamos ter que reexaminar. A discussão
sobre o Coaf é qual o nível de detalhamento das informações para que se possa
pedir a quebra. Vamos ter que travar o debate sobre um sistema mais ortodoxo,
que pode ser mais lento, ou um mais flexível. Tenho a impressão de que vamos
votar agora neste segundo semestre.
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