
O
jornal O Globo, que apoiou o golpe de estado contra a ex-presidente Dilma
Rousseff em 2016 e a prisão de Lula em 2018, que abriu caminho para a ascensão
de Jair Bolsonaro, agora se dá conta de que o Brasil está diante de uma
"aposta arriscada, irresponsável e criminosa no caos".
É o que
aponta editorial de página inteira publicada nesta
quinta-feira 27 no jornal.
Confira
abaixo o Editorial de O Globo na integra:
Jair
Bolsonaro tem biografia conhecida, construída em 28 anos de mandatos exercidos
como representante corporativo de militares e policiais, com um perfil de
extrema direita. Foi beneficiado em 2018 por uma conjunção feliz para ele, em
que a debacle da esquerda, desestabilizada pelo desastre ético lulopetista e
pela teimosia do ex-presidente Lula em continuar dono do PT, somada à falta de
nomes para ocupar espaços no centro, permitiu a sua eleição, com a ajuda de
muitos que usaram o voto para punir o PT.
À
medida que o ex-capitão foi revelando toda a face de extremista, e não apenas
na política, boa parte destes eleitores se afastou. Bolsonaro tornou-se, então,
um presidente de baixa popularidade, sustentado por milícias digitais e claques
de porta de Palácio. E passou cada vez mais a dirigir-se a estes bolsões, o que
o foi afastando da maior parcela da sociedade.
Se
não era um político desconhecido, Bolsonaro vem demonstrando uma faceta
temerária menos previsível: de esticar a corda em seu comportamento de
extremista, sem qualquer preocupação com a importância e o decoro do cargo de
presidente da República, agindo como chefe de facção radical, de bando,
ultrapassando todos os limites do convívio democrático. Desconsidera a divisão
de poderes feita pela Constituição, ameaça o Congresso, o Judiciário e, logo,
sua Corte Suprema.
A
adesão pelo presidente, por meio de vídeo, na terça-feira, a uma convocação
bolsonarista para atos de rua em 15 de março, contra o Congresso e o STF,
representou mais uma elevação de tom de Bolsonaro na sua escalada de mau
comportamento e de desrespeito.
Ainda
no último dia de carnaval, começaram as devidas repercussões negativas.
Destaca-se a nota enviada à “Folha de S.Paulo” pelo decano do Supremo, ministro
Celso de Mello, que mais uma vez se manifesta diante de um desvario
bolsonariano: a atitude de Bolsonaro, se confirmada, revela a “face sombria de
um presidente da República que desconhece o valor da ordem constitucional, que
ignora o sentido fundamental da separação de Poderes, que demonstra uma visão
indigna de quem não está à altura do altíssimo cargo que exerce e cujo ato de
inequívoca hostilidade aos demais Poderes da República traduz gesto de ominoso
desapreço e de inaceitável degradação do princípio democrático!!!!”.
O
ministro conclui a nota com o alerta de que o presidente da República “embora
possa muito, não pode tudo”, e se “transgredir a supremacia político-jurídica
da Constituição e das leis da República” pode ser denunciado por crime de
responsabilidade. Punido, portanto, com impeachment, como já aprendeu o país.
Bolsonaro,
quarta pela manhã, ensaiou suavizar sua inconcebível aprovação de manifestações
contra a República, alegando ter compartilhado entre “amigos” o seu apoio e que
quaisquer outras interpretações do que fizera são “tentativas rasteiras de
tumultuar a República”.
Mas
essas supostas “tentativas rasteiras” tinham razão de ser. Afinal, o presidente
compartilhou o vídeo por meio de sua conta particular do WhatsApp, em que
aparece o brasão da República. De mais a mais, trata-se de uma tentativa frágil
de afastar responsabilidades. O presidente da República sempre falará nesta
condição.
Mesmo
que a atenuação feita por Bolsonaro possa reduzir tensões — é melhor que assim
seja —, elas não devem se dissipar completamente. O fato de a convocação das manifestações,
compartilhada pelo presidente, citar Bolsonaro e também o ministro do Gabinete
de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, general da reserva, indica
alguma articulação no Planalto em favor dos atos.
Há,
ainda, uma óbvia relação entre as agressões verbais feitas por Heleno ao
Congresso, gravadas acidentalmente, e a convocação das manifestações. O próprio
Heleno, em reunião privada no Planalto, pediu a Bolsonaro que convocasse o povo
às ruas, para mostrar ao Congresso quem manda — ficou implícito. É o oposto do
que estabelece a democracia representativa que Bolsonaro jurou respeitar. A
persistir nesta rota, o presidente trairá o juramento de posse.
Os
arroubos de Augusto Heleno, tudo indica que compartilhados com Bolsonaro,
ocorrem em meio a uma negociação com o Congresso sobre vetos do presidente à
Lei de Diretrizes Orçamentárias, envolvendo emendas parlamentares. Os vetos
poderão ser derrubados ou não a depender dos entendimentos. Nada que não possa
ser negociado politicamente.
Jair
Bolsonaro, com as frações radicais que o cercam, parece ter decidido entrar em
rota de colisão com as instituições, cujo resultado pode ser uma crise
institucional que não interessa a ninguém, inclusive a ele, chefe do Executivo,
um dos que dependem da estabilidade. Bolsonaro deveria desejar que a economia e
o país de fato se recuperem e o permitam tentar com êxito a reeleição em 2022.
A não ser que faça uma aposta arriscada, irresponsável e criminosa no caos.
Neste
surto de radicalização, Bolsonaro e família sinalizaram solidariedade a
policiais militares amotinados no Ceará, outro atentado ao estado de direito. O
presidente tem citado a Venezuela chavista como o mau exemplo no continente. Pois a está seguindo, ao aplicar o manual do caudilho Hugo Chávez, que
destroçou a democracia no país criando crises institucionais, para avançar com
seu modelo nacional-populista autoritário. Destruiu a própria Venezuela. A não
ser que Bolsonaro e grupo delirem ao vislumbrar um atalho para atropelar o
Congresso e o Judiciário, por acharem que este é o melhor caminho para a
execução do seu projeto. Não é, e para nenhum projeto.
Trata-se
da fórmula de mais uma tragédia nacional, em um país que já padeceu duas longas
ditaduras na República e aprovou o impeachment de três presidentes — sabe como
fazer e conhece o alto custo da empreitada decorrente da paralisação do país.
O
atrevimento do presidente e de seu grupo começou na quarta-feira a ter mais uma
vez uma resposta à altura no Congresso, no Judiciário, na sociedade. Algum
tempo atrás, o mesmo Celso de Mello já advertira o presidente por haver postado
um vídeo inconcebível em que uma hiena simboliza o Supremo.
O
direito à livre manifestação é garantido pela Constituição. Se apoiadores de
Bolsonaro querem transmitir alguma mensagem política, a Carta está do seu lado.
Mas ninguém pode, de dentro ou de fora do Planalto, querer impor a vontade
própria na marra.
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