As
altas horas da madrugada, quando os relógios já ultrapassavam a marca das três
horas da manhã, o sol ainda nem se preparava para fazer brilhar o céu da terra
do cardeal, os boêmios eram dispensados de seus santuários etílicos e
gastronômicos em busca de um sono tranquilo ou, quem sabe, de um porto seguro
aonde a fome das conversas e a sede da amizade pudesse se prolongar ao murmúrio
da madrugada até que a barra da manhã começasse a marcar a chegada oficialmente
do novo dia, particularmente, do sábado, pai adotivo dos que rondavam as noites
arcoverdenses e que os esperava em seus recantos mais remotos, mas também mais
famosos e conhecidos.
E assim iam eles, noite a dentro, em meio a arrobas,
orelhas, coxas, cabeças, tripas, fígados e coração, adentro o santuário da
despedida da boêmia. Nada de chique. Nem garçom, nem mesmo guardanapo, coisa
que ficou mais comum depois dos tempos. Bem lá no fundo, daquele prédio rústico,
aonde ferros dependurados ostentavam não as belas imagens da vida, mas pedaços,
partes de animais que um dia pastaram em suas terras e naquele momentos se expunham
para servir de alimentos aos filhos da terra. Mas essa paisagem não
interessaram aqueles que cruzavam a cidade, sejam vindo lá da Rodoviária, aonde
o macarrão com ovo não existiam mais. Seja fechando as portas da taberna, caras
e bocas, kananga, albatroz, alternativa, chamego e tantos e tantos outros que
serviam de aparato para as noites dos boêmios, para os encontros de conversas,
romances e simplesmente para brindar a vida ou mesmo afogar as amarguras.
Mas era
ali, naquele prédio inaugurado em 1947, quando o velho Severiano José Freire,
político e prefeito da época, entregava a população o histórico Mercado Público. Bem ali,
lá no fundo, em meio os quiosques, num recanto da vida, surgia o cheiro do cuscuz,
da carne guisada, do rim de boi e aquela loira estúpida que teimava em não
dormir à espera dos últimos filhos da noite. Entre velhas mesas de ferro,
surgidas com a modernidade, copos trocavam os últimos brindes da madrugada
encerrando conversas que já não se sabiam como tinham começado. Por ali
passaram gerações, jovens que no vigor da vida não tinham hora para dormir e,
muito menos, para despertar em busca do dia de trabalho que o sábado ainda
reservava. Fecharam-se as portas do mercado.
A modernidade e a visão de futuro
do ex-prefeito Zeca Cavalcanti, que também fez história na terra do Cardeal, fez com que o famoso
mercado de carnes adentrasse o espaço do Cecora, outro marco das mudanças
históricas da cidade implantado pelo também ex-prefeito Ruy de Barros. Ali, aonde o ex-prefeito idealizou e novo espaço, nasceu
um novo mercado, com suas tarimbas, facas e balanças. Mas pra lá não foi o
espaço dos viventes da noite, dos que tinham no mercado e em seu recanto
preferido, o último deleite de uma madrugada agitada.
Fecharam-se as portas do
mercado, a cidade colhe os frutos da modernidade plantadas no passado, mas fica
na história os portões do velho mercado subindo, os marchantes recebendo suas
carnes e os velhos amigos e boêmios, filhos dos sonhos possíveis que só a
madrugada e uma loira gelada permitiam realizar. No novo espaço, entregue pela atual prefeita, não lhes cabe
mais, pois as chamadas leis que fecham os olhos para os tantos bares do Cecora,
agora lhes fecham as portas no novo mercado, fechando de vez o livro da história
do bar do açougue. As madrugadas seguem, os filhos da madrugada e das conversas
regadas ao cuscuz e a carne guisada, até mesmo ao rim de boi, agora terão que
buscar novos abrigos, nova vida após a noite, novos recantos aonde a história
possa abrir uma nova página e reescrever a vida após a madrugada.
Por Paulo Edson
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