Sempre
que a seletividade das investigações da Lava Jato se torna um fato evidente
como a silhueta do Pão de Açúcar na paisagem do Rio de Janeiro, aliados do juiz
Sérgio Moro sacam um argumento conhecido: “um crime deve ser tolerado só porque
outros o praticam?”
Inteligente
na aparência, esse argumento tenta esconder uma verdade mais dura, inaceitável.
Vivemos num país onde a seletividade não é um acaso — mas um método.
Essa
visão benigna do problema ressurgiu agora, quando a delação premiada de Ricardo
Pessoa, mesmo voltada para produzir provas e acusações contra o governo Dilma,
Lula e o Partido dos Trabalhadores, não pode deixar de jogar luzes sobre a
campanha do PSDB e outros partidos de oposição.
O
recursos estão lá, demonstrando que Aécio Neves recebeu mais dinheiro do que
Dilma. Que Aloysio Nunes Ferreira levou uma parte em cheque, a outra em
dinheiro vivo. Julio Delgado, o relator da cassação de dois parlamentares —
José Dirceu e André Vargas — foi acusado de embolsar R$ 150 000 reais de uma
remessa maior enviada a Gim Argello para enterrar uma das diversas CPIs sobre a
Petrobras.
Será
a mesma que permitiu ao senador Sergio Guerra, então presidente do PSDB, levar
R$ 10 milhões, uma quantia 66 vezes maior que a de Julio Delgado, para fazer a
mesma coisa? Ou essa era outra CPI?
Não
sabemos e dificilmente saberemos. A presença de altas somas nos meios políticos
é uma decorrência natural das regras de financiamento de campanha, criadas
justamente para que os empresários sejam recebidos de portas abertas pelos
partidos e candidatos, com direito às mesuras merecidas por quem carrega uma
mercadoria tão essencial, não é mesmo?
Não custa lembrar: justamente o PSDB foi responsável pela entrega de votos
essenciais para a manutenção das contribuições de empresas privadas em
campanhas eleitorais. Os tucanos gostam tanto desse tipo de coisa que, quando
ocorreu uma segunda votação, na última chance para se conservar o sistema, até
os dois parlamentares — só dois, veja bem –que se abstiveram na primeira vez
foram chamados a fazer sua parte e não se negaram a participar de uma manobra
que, além de tudo, tinha caráter anticonstitucional.
O PT, seletivamente investigado na Lava Jato, votou contra.
Não é curioso? Não seria muito mais proveitoso entender o imenso interesse
tucano pelo dinheiro dos empresários, os mesmos, exatamente os mesmos, que
agora são interrogados e presos por longos meses depois que resolveram ajudar o
PT?
Isso
acontece porque a seletividade não é um acidente de percurso. Está na essência
de investigações de grande interesse político — como a Lava Jato, a AP 470 —
porque não interessa investigar todo e qualquer suspeito num país onde o Estado
“se legitima” quando atua em defesa do ” grupo dominante,” nas palavras da
professora Maria Silvia de Carvalho Franco.
Quando você escolhe o alvo e seleciona o inimigo, a regra fundamental de que
todos são iguais perante a lei, qualquer que seja sua raça, origem social ou
credo, deve ser ignorada porque só atrapalha o serviço. A igualdade deve ser
substituída pela seletividade.
No
Brasil colonia, a Coroa portuguesa procurava hereges que pudessem ser julgados
pela inquisição. Eles eram procurados até nos banheiros, acusados de proferir
blasfêmias que ofendiam a Igreja Católica. Localizados e presos, eram
conduzidos a Portugal, aprende-se nos relatos do livro Tempo dos Flamengos, do
pesquisador Antônio Gonsalves (com “s” mesmo) de Mello.
Esse tratamento, brutal, inaceitável, era coerente com um regime absolutista,
no qual homens e mulheres eram desiguais por determinação divina. A
seletividade fazia parte natural das coisas.
Em
tempos atuais, onde a democracia é um valor universal, é preciso escolher muito
bem os alvos e ter noção de seu significado. Quem legitima a escolha? Os meios
de comunicação, a principal correia de transmissão entre as ações do Estado e o
conjunto da sociedade, que também espelha o ponto de vista do mesmo “grupo
dominante”.
Não
vamos esquecer que os mesmos jornais e revistas que hoje glorificam Sérgio Moro
e em 2012 endeusaram Joaquim Barbosa também aplaudiram o delegado Sérgio Fleury
e outros torturadores que eram apresentados como caçadores de terroristas.
Questão de momento, vamos combinar.
Se a denúncia do caráter parcial de uma investigação obviamente beneficia quem
está sendo prejudicado, o problema real é muito maior. A seletividade modifica
a natureza do trabalho de apuração. Deixa de ser expressão de um erro, humano
como todos os outros, para se tornar um método.
Quando uma investigação que deveria produzir uma decisão judicial isenta se
transforma numa operação política, os objetivos mudam e os resultados também.
Muitos culpados são apenas “culpados”, porque sua culpa está definida de
antemão e só precisa ser confirmada pelas investigações. Vice-versa para quem
se torna “inocente.”
Para
dar um único exemplo, entre vários: policiais que trabalharam para AP 470
descobriram que o ex-ministro Pimenta da Veiga recebeu R$ 300.000,00 de Marcos
Valério, em quatro cheques caídos em sua conta, meses depois do final do
governo FHC. Embora essa soma seja seis vezes superior aos R$ 50.000,00 que
João Paulo Cunha recebeu em sua conta, cumprindo pena de prisão por esse
motivo, a investigação sobre Pimenta sequer está encerrada — doze anos depois
dos cheques de Valério terem caído em sua conta. O ex-ministro tucano é
culpado? Suspeito? Quem saberá?
Paulo Moreira Leite
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