Publicado no Congresso em foco
Por Lúcio de Castro, da Agência Sportlight
Em
12 de agosto de 2003, o deputado Jair Bolsonaro foi ao microfone do plenário da
Câmara dos Deputados e fez veemente defesa dos crimes de extermínio. Exaltados
como solução para a política de segurança a ser adotada no Rio de Janeiro. O
motivo para a apaixonada defesa era a ação de um esquadrão da morte que vinha
aterrorizando a Bahia desde o início daquela década. Deu boas vindas aos foras
da lei mesmo reconhecendo a ilegalidade.
A
Agência Sportlight de Jornalismo Investigativo revelou que a fala do deputado
omitiu a motivação econômica que movia e razão de ser dos criminosos munidos
com carteira do estado: um grande negócio travestido de combate ao crime.
“Quero
dizer aos companheiros da Bahia — há pouco ouvi um parlamentar criticar os
grupos de extermínio — que enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena
de morte, o crime de extermínio, no meu entender, será muito bem-vindo. Se não
houver espaço para ele na Bahia, pode ir para o Rio de Janeiro. Se depender de
mim, terão todo o meu apoio, porque no meu estado só as pessoas inocentes são
dizimadas. Na Bahia, pelas informações que tenho — lógico que são grupos
ilegais —, a marginalidade tem decrescido. Meus parabéns”!
Veja
a imagem do discurso reproduzida da página da Câmara:
Muitos dos criminosos parabenizados pelo parlamentar por seus feitos não tinham
rosto, mas os crimes tem números. No ano de 2000, foram 146 registros de mortos
em ação de grupos de extermínio apenas na capital Salvador. Maioria absoluta de
jovens negros e favelados. Subiu drasticamente no ano seguinte, indo para 321
assassinados por esses esquadrões da morte. Em 2002, 302 assassinatos. Os
números são da “Comissão de Direitos Humanos” da Assembleia Legislativa do
Estado da Bahia (Alba) daquele mesmo ano do discurso de Bolsonaro. A dimensão
do genocídio gerou uma Comissão Parlamentar de Inquérito na assembleia baiana.
Os
assassinatos eram parte de um comércio que financiou o grupo de extermínio
exaltado pelo parlamentar.
É
o que mostra uma das mais completas abordagens sobre o tema.
Autor
de minucioso estudo (“Entre o vigilantismo e o empreendedorismo violento”) para
mestrado em Ciências Sociais na Universidade Federal da Bahia (UFBA), com
recorte nesses grupos que agiram na Bahia naqueles anos, o advogado Bruno
Teixeira Bahia relata as características de tais ações e grupos. “Eram
compostos, em sua maioria, por policiais e ex-policiais civis e militares,
ressaltando, ainda, que em quase todos os casos as vítimas eram jovens, negros
e pobres, com idade entre 14 e 26 anos e sem passagem pela polícia”, está na
peça.
Os
assassinatos destacados como política de segurança por Bolsonaro em sua maioria
eram precedidos de tortura, de acordo com o estudo. “As vítimas, em geral, são
encontradas com marcas de tiros em pontos vitais, geralmente na cabeça, nuca e
ouvido. Além dos disparos, também eram levadas em consideração outras marcas
deixadas nos corpos das vítimas, como mãos amarradas, sinais de tortura, tais
como unhas e dentes arrancados, hematomas por todo o corpo e, às vezes, o
ateamento de fogo ao cadáver”.
Outra
característica apontada no trabalho de Bruno Teixeira Bahia é a absoluta
impunidade e conivência do poder público com tais práticas. “O chefe do Poder
Executivo (à época Governador Paulo Souto), apesar das evidências, negava a
existência de tais grupos, estratégia também utilizada pela Secretaria de
Segurança Pública, a qual atuava de forma isolada e não respondia a nenhum
ofício ou questionamento da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados
do Brasil, nem de qualquer outra Comissão de Direitos Humanos”, relata.
Entre tantos, provavelmente o mais contundente dado é comprovação das
investigações e inquéritos judiciais, além da CPI, de que o extermínio
organizado foi um grande comércio. De vida e morte. Em Juazeiro, interior do
estado, as mortes eram encomendadas muitas vezes por comerciantes. Valores
entre R$ 50 e R$ 100 pagavam um assassino de aluguel desses grupos.
“Uma quadrilha formada por comerciantes que pagavam a importância de 50 a 100
reais pela morte de delinquentes com diversas entradas na delegacia regional de
Juazeiro por pequenos crimes contra o patrimônio. Apesar do reconhecimento
oficial da existência de um grupo que trabalhava em prol do extermínio de
pessoas com passagens pela polícia, inclusive com a descoberta de uma rede de
pagamento formada por comerciantes locais, o silêncio marcou o depoimento do
então comandante da polícia de Juazeiro quando a questão era quem seriam ou
como agiam os executores”, conta o advogado e cientista social.
Depoimento
tomado junto a policial revela discurso bem próximo ao do parlamentar. As
definições “pessoas boas”, “vagabundo”, além da reclamação pela existência de
leis que proíbem o assassinato, comuns no discurso do parlamentar, estão
presentes na fala do integrante do grupo:
“E
é assim, a nossa tristeza é porque a população as pessoas boas merecem um
bairro com respeito, eles não tem. O vagabundo mata, estupra, faz e acontece,
ninguém toma providência”, justifica o policial.
Transformado em negócio por essas milícias, os assassinatos exaltados por
Bolsonaro logo cruzaram novas fronteiras. Pela remuneração, o alvo dos
exterminadores se ampliou. “O entrevistado também destacou que somente matou
bandido e confessou ter feito isso tanto em serviço como para ganhar dinheiro
de comerciantes. Contudo, relatou que nesta prática ‘às vezes as coisas fugiam
um pouco do controle’, confirmando que nem sempre os alvos dos integrantes do
grupo eram bandidos, como no caso descrito no parágrafo anterior e como em
outras oportunidades quando algum policial que agia no grupo resolvia matar
outras pessoas, mesmo que estas não tivessem envolvimento na prática de
crimes”.
O
autor aponta ainda como a suposta solução do “bandido bom é bandido morto” logo
se transforma em mercado:
“O
uso da violência pelos membros de um grupo de extermínio não pode ser limitado
à concepção de combate à ação dos “bichos” ou dos “bandidos”. Ser capaz de usar
a violência e estar disposto a fazê-lo diferencia o agente no meio social em
que vive e o credencia a usar suas habilidades como capital social dentro de um
mercado econômico, já que, como visto, não há controles informais que o impeça
de assim agir. A capacidade no uso da violência, como desenvolvimento de uma
carreira moral, torna o agente, perante a sociedade, especializado para a
realização de atividades com valor financeiro, em um verdadeiro mercado da
violência”.
A
política de eliminação transformada em negócio logo vira relação promíscua,
como está em depoimento do livro de Bruno Teixeira Bahia. “E também tem assim,
se tem os traficantes que a gente já conhece “das antiga”, da nossa época, ele
comanda a porra dele, tipo assim, ele não deixava que nada acontecesse naquela
área e a gente ficava de boa, e cá também, ele não bagunça e a gente fica de
boa. Tinha um que “pagava a etapa” toda semana”.
A
morte vira lucrativa ferramenta nesse tipo de política de segurança.
“Se o agente se acostuma ao uso da violência e desenvolve habilidades no trato
com a mesma não é desarrazoado supor que tais habilidades o acompanhem tanto em
tarefas exercitadas fora do policiamento oficial, quanto nos chamados serviços
de seguranças clandestinos. Do combate à criminalidade, à resolução de
contendas pessoais, passando pela venda dos serviços no setor privado, seja
lícito (comércio) ou ilícito (tráfico de drogas), a morte se apresenta como uma
ferramenta, afiada e azeitada por anos dentro das práticas policiais”.
Outro lado:
A
reportagem tentou contato com Jair Bolsonaro sobre o tema sem êxito.
Para
acessar os registros do discurso acima mencionado na Câmara, acesse:
http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/discursos-e-notas-taquigraficas
Nome:
Jair Bolsonaro
Período
Data inicial:
12/08/2003
Data final:
12/08/2003
Matéria veiculada no site do Diário de Pernambuco neste sábado (13):
http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/politica/2018/10/13/interna_politica,765394/em-discurso-bolsonaro-apoiou-grupo-de-exterminio-que-cobrava-r-50-pa.shtml